Risco de utilização dos dados para outros fins é uma das preocupações
O governo de São Paulo anunciou no início de abril o Sistema de Monitoramento Inteligente de São Paulo (Simi-SP), em parceria com as operadoras Vivo, Claro, Oi e TIM. O projeto usa dados digitais para medir a adesão à quarentena em todo o estado e também envia mensagens de alerta para regiões com maior incidência da Covid-19.
De acordo com o governo, a ferramenta usa informações georreferenciadas de mobilidade urbana em tempo real e, para garantir a privacidade, lança mão de uma base de dados coletados em aglomerados a partir de 30 mil pessoas.
Para o advogado Petros Georgios Papathanasiadis Neto, especializado em direito digital, a medida pode gerar muita discussão e ser objetivo de ações judiciais futuras. “Faltou amparo jurídico do governo de São Paulo na sua decisão. O primeiro passo seria criar uma política de saúde pública orientada a dados e por dados. Os estados precisam fazer parcerias com autoridades responsáveis para gerar segurança jurídica nas suas políticas. Mas, tudo ainda pode ser corrigido e rearranjado”, acrescenta.
O professor da Ufrgs e membro do Instituto de Especialistas do Instituto de Engenheiros Eletrônicos e Eletricistas (IEEE), Edson Prestes, diz ainda que a forma como essas informações são coletadas deve ser muito cuidadosa. “Os dados precisam ser homogêneos para evitarmos viés e a tomada de conclusões erradas. Imagina só coletar dados de pessoas que moram em bairros nobres e, partir disso, definir se toda população está se cuidando ou não?”, questiona ele, que também integra o Painel de Alto Nível da ONU sobre Cooperação Digital.
Ao individualizar o dado de uma pessoa, por exemplo, é possível saber que região ela costuma, que dias da semana vai ao supermercado e se costuma ir a academias, podendo criar e prever padrões de consumo. Ou, ainda mais grave, é possível monitorar grupos da sociedade e tomar medidas restritivas contra eles. “Um risco, por exemplo, é pegar dados da comunidade LGBT para ver se ela está seguindo a quarentena e, dependendo do tipo de governo instaurado, penalizar um segmento da sociedade em detrimento de outros”, exemplifica.
Se estivesse em vigor, LGPD seria amparo importante
Esse cenário que vivemos é aquele momento típico em que quem acompanha o desenrolar da LGPD no Brasil lamenta, e muito, a demora para a entrada em vigor da legislação, promulgada pelo presidente Michel Temer em 2018. Prevista para entrar em vigência em agosto deste ano, foi adiada para 2021 em função do coronavírus.
“Falta uma autoridade de proteção de dados que, embora prevista na LGPD, ainda não está em vigor. Hoje não temos quem possa dar uma orientação normativa e um respaldo para os agentes públicos tomadores de decisão entenderem que as políticas públicas de agora em diante devem considerar o uso correto dos dados das pessoas”, analisa Papathanasiadis.
Kalinka concorda. “Estamos pagando o preço pela morosidade da implantação da LGPD. O maior problema é que hoje, ao permitir que os dados sejam monitorados, não temos como garantir que depois as empresas ou o governo vão descartar as informações ou, ainda, que irão guardá-las da forma correta”, diz. Segundo ela, se os dados fornecidos não forem apenas os mapas de calor ou um agrupamento difícil de ser separado e individualizado, fica complicado manter o anonimato.
Com a presença de uma autoridade na área seria possível, por exemplo, estabelecer regras que assegurem aos usuários informações transparentes sobre o que está sendo coletado e o uso que será feito. “Alguns países que já tem essa legislação em vigor, como os europeus, tem diretrizes claras do que é permitido ou não, e até mesmo os cuidados com a segurança a serem tomados por todos”, destaca.
Fonte: Jornal do Comércio
05 de maio de 2020